Waldson Pinheiro, “Interlíngua, a solução natural”

A questão da língua internacional

Vivemos desde algumas décadas na chamada aldeia global, que existe de fato na informação instantânea do que acontece em qualquer de seus recantos. Infelizmente, quando habitantes de diversas moradas dessa aldeia topam uns com os outros, o que prevalece é a velha imagem do babelismo: não se entendem com suas línguas diferentes. É quando se faz sentir intensamente a necessidade de intercomunicação oral e escrita.

A multiplicidade de idiomas ocasiona sérias dificuldades, e não seria sensato tentar fazer as pessoas poliglotas. Isso não significa, porém, desaconselhar o estudo de línguas estrangeiras. Tal estudo pode ser altamente gratificante e mesmo necessário. Nenhum brasileiro conseguirá ser versado na cultura islâmica sem conhecer a língua árabe, ou especialista em Goethe sem saber alemão. Mas, quando se trata de contactos internacionais múltiplos, para fins de turismo, negócios, congressos, cursos breves e leituras especializadas, aí se faz extremamente necessária a adoção de uma língua auxiliar internacional.

Periodicamente, determinado idioma nacional tem servido de instrumento parcial de comunicação, propagado pelo poder militar, econômico ou tecnológico de seus falantes nativos. No Mundo Antigo Ocidental foi o grego, o latim na Idade Média, o francês nos dois últimos séculos. Atualmente o inglês assume a liderança, a ser sucedido possivelmente pelo alemão ou japonês em futuro próximo. É oportuno lembrar que o português foi no século XVI a língua franca do comércio marítimo para a Índia e o Japão.

Claro está que, se houvesse um acordo internacional para se adotar uma das línguas nacionais como segunda língua da humanidade, o problema imediato de remoção das barreiras lingüísticas estaria resolvido. Mas a um custo muito elevado em termos de auto-estima de cada nacionalidade. Fosse o inglês, por exemplo, esta seria a solução ideal para os povos de língua inglesa, que poderiam assim ter o resto do mundo como uma grande colônia. Daí que, por motivos nacionalistas, os outros grandes países jamais concederão à Inglaterra e aos Estados Unidos o privilégio inaudito de utilizar sempre o inglês como a única língua oficial nas negociações.

Além disso, o inglês não é tão fácil como querem seus propagandistas. Sua gramática é realmente muito mais simples que a do russo, do alemão e do português. Mas sua grafia é um caso patológico. Teríamos todos de conviver com a escrita mais caótica de todas as línguas que usam alfabeto. Nunca se pode saber como ler uma palavra que já não se conheça. É preciso aprender escrita e pronúncia como coisas separadas. O inglês escrito é o chinês da Europa, e não há como fazer-lhe uma reforma ortográfica. Aliás, já se estuda inglês em todos os países, mas em nenhuma parte o bastante que alguém possa publicar nessa língua sem o mandar revisar por um falante nativo.

A realidade hoje é que não existe uma língua comum. Imagine-se então o mal-estar de muitos cientistas sabedores da existência de valiosas pesquisas que continuam desconhecidas por falta de tradução.

A ausência de uma língua comum dificulta o intercâmbio de idéias, obras culturais e mercadorias. Limita as viagens dos representantes industriais e comerciais, restringindo oportunidades. Numa era em que a tecnologia tornou instantânea a comunicação verbal e escrita, o elo mais fraco na cadeia da comunicação é a incapacidade das pessoas para falar e entender as línguas umas das outras.

O que se tem feito até agora, a nível oficial, para enfrentar esta realidade? Após a I Guerra Mundial, a Liga das Nações tinha só o inglês e o francês como línguas oficiais. a ONU, fundada em 1945, adotou esses dois idiomas como "línguas de trabalho", entre as cinco línguas oficiais: inglês, francês, espanhol, russo e chinês. Dessa forma, os discursos ou comunicações poderiam ser feitos em qualquer dessas línguas oficiais, observado o seguinte dispositivo: um pronunciamento feito em uma das línguas de trabalho só precisaria ser traduzido para a outra; mas, se feito em uma das outras três oficiais, teria de ser traduzido em ambas as línguas de trabalho. Pressão posterior levou ao reconhecimento de outras línguas de trabalho. A UNESCO, em 1966, aceitou o árabe como a sexta língua para as conferências, e sua revista é publicada, com o mesmo conteúdo, em 11 línguas.

Apenas a Corte Internacional de Justiça, em Haia, mantém o inglês e o francês como únicas línguas oficiais. Ironicamente, o princípio básico de justiça internacional fica destarte prejudicado, pois um advogado de língua inglesa ou francesa perante aquela Corta goza de uma vantagem injusta sobre qualquer outro que não esteja usando sua língua materna.

O problema com a diversidade de línguas é ainda mais complicado na União Européia, onde atualmente há onze línguas "oficiais": alemão, dinamarquês, espanhol, finlandês, francês, grego, holandês, inglês, italiano, português e sueco. Como muitas outras nações devem ingressar na União Européia, a tendência é que esse número se eleve a vinte ou mais idiomas. A União Européia já despende 60% de seu orçamento administrativo com traduções e interpretações, trabalhando apenas com onze línguas.

Por sua vez, o sistema de traduções e interpretações presta-se a muitas falhas. Mesmo com tradutores e intérpretes de primeira classe, os mal-entendidos são freqüentes. Sirva de exemplo o famoso incidente na ONU entre o representante francês e o dos Estados Unidos, que protestou contra as palavras do colega. Dizia o francês: "La France demande aux États Unis de..." (A França pede aos Estados Unidos que...), frase traduzida em inglês como: "France demands that the United States..." (A França exige que os Estados Unidos...). É que o tradutor confundiu o "demande" francês como o "demands" inglês, semelhantes na grafia e som mas diferentes em significado. A essa espécie de termos facilmente confundíveis chamam os franceses de "faux amis" (falsos amigos).

Quanto mais técnico e especializado seja o discurso ou o texto, maior deve ser a competência nas duas línguas por parte do tradutor, aliada ainda a um bom conhecimento da matéria tratada.

Muitas vezes também não se traduz ou interpreta da língua original, mas de uma tradução ou interpretação noutra língua. Pode-se facilmente imaginar as divergências que podem surgir nesse processo. Discursando, por exemplo, o representante da Dinamarca, um tradutor português poderá achar mais cômodo traduzir da tradução que está fazendo seu colega francês ou espanhol.

O número de tradutores e intérpretes necessários em qualquer conferência aumenta em progressão geométrica, de fórmula x = n × (n – 1), onde "n" representa o número de línguas usadas.

Daí para duas línguas:

x = 2 × (2 – 1) = 2 × 1 = 2;

e para as onze línguas atuais da União Européia:

x = 11 × (11 – 1) = 11 × 10 = 110.


Diagrama 1
   
Diagrama 2

O diagrama 1 ilustra este último caso, e o digrama 2 mostra a redução do número de tradutores para um processo de tradução de apenas dois estágios, quando se traduz de determinada língua para outra "neutra", uma "língua-ponte", e em seguida desta para cada uma das demais. Este segundo processo possibilitaria uma economia substancial de tempo, de funcionários e conseqüentemente de recursos financeiros.

Como acabamos de ver, recorrer a tradutores e intérpretes, sempre em crescente demanda, não garante perfeita satisfação e envolve pesados investimentos. Derivou-se então para as possibilidades da tradução mecânica através da versatilidade dos computadores.

Evidentemente, ninguém espera que um programa de computador produza textos literários. Feita esta reserva, em matérias científicas e técnicas, torna-se aceitável obter uma tradução um tanto tosca mas inteligível ao especialista. A grande dificuldade da tradução por computador reside na linguagem humana, freqüentemente ilógica e ambígua.

O computador poderá mesmo reproduzir a anedota do estudante de inglês que, ouvindo bater à sua porta, folheia rápido o dicionário procurando a palavra "entre!" e grita um sonoro "between". A confusão aqui feita entre verbo e preposição pode repetir-se com muitas outras palavras. O português "como", dependendo do contexto, será traduzido em inglês pela forma verbal "I eat", pelo advérbio "how" ou pelas conjunções "as" e "like". A palavra "alto" poderá ser os adjetivos "high" ou "tall", que têm uso diferenciado (edifício alto é "high building", mas homem alto é "tall man"), ou o substantivo "top", ou a interjeição "halt!".

A tradução também não pode ser simplesmente a substituição de uma palavra por outra. A frase em inglês "at last he wakes up" (finalmente ele desperta) poderia terminar traduzida como "em lastro ele acorda para cima", um completo disparate.

Ainda outro problema é que muitas vezes não há correspondência perfeita entre as palavras de duas línguas. Exemplifiquemos com a palavra inglesa "room", imediatamente traduzida como "sala" ou "quarto" por alguém que tenha estudado um pouco de inglês. Ocorre, porém, que o significado básico desta palavra é "espaço", como na frase "It took up much room" (ocupou muito espaço), que uma tradução desastrada, palavra por palavra, transformaria em algo como "ele tomou em cima muita sala".

Outras vezes a tradução pressupõe conhecimentos gerais, como é o caso de um texto alusivo à Guerra de Tróia, onde a passagem Paris' arrow foi vertida como "flecha de Paris" (capital da França), quando o legítimo significado era "flecha de Páris" (aquela envenenada com que o príncipe troiano Páris acertou o calcanhar de Aquiles).

Por último, cabe comentar as tentativas de solucionar a questão da língua comum internacional, através de uma língua planejada, sem as irregularidades das línguas naturais e dotada de um caráter de neutralidade.

No século XVII, sábios do porte do francês Descartes, do tcheco Komensky (mais conhecido por Comenius) e do alemão Leibnitz defendiam a idéia de uma língua filosófica, perfeitamente regular e isenta das ambigüidades dos idiomas nacionais.

No século XVIII, ocorreu até um protesto inglês contra a pretensão francesa de que tratados comerciais entre nações fossem oficialmente redigidos em francês. Defendiam então os súditos de Sua Majestade Britânica que "todas as nações têm o direito de relacionarem-se em uma língua neutra".

Quando a Europa, por intermédio de seus missionários, entrou em contacto com a escrita chinesa de caráter ideográfico, houve quem imaginasse que ali estava a solução para o intercâmbio de idéias entre os povos europeus de línguas diferentes. Bastaria dividir os conhecimentos humanos em certo número de categorias lógicas e criar símbolos para todos os conceitos. Chama-se a isto Pasigrafia, ou escrita universal.

J. J. Becher, em 1661, na Alemanha, criou um sistema em que todas as palavras eram representadas por números. Note-se que o sistema de numeração usado mundialmente funciona como uma pasigrafia. O símbolo 5 evoca em todas as pessoas a mesma idéia, não obstante ser chamado "cinco" em português, "five" em inglês, "pyat" em russo, "khamsa" em árabe e "go" em japonês.

Uma utilização moderna dos princípios da pasigrafia pode ser encontrada nos sinais internacionais de trânsito. Ainda em 1957, novo modelo de pasigrafia estava sendo proposto, o Picto, engenhoso sistema composto por 400 ideóglifos — desenhos de idéias.

A primeira língua planejada a ter notável difusão por toda uma década foi o Volapük, a partir de 1880, criada pelo sacerdote bávaro Johann Martin Schleyer, língua extraordinariamente regular e incompreensível para todos os não-iniciados, o que pelo menos lhe confere extrema neutralidade. "Bodi absik vädelik givolös obes adelo!", em volapuque equivale à súplica "o pão nosso de cada dia nos dai hoje!".

O Volapuque foi logo em seguida suplantado pelo Esperanto, divulgado em 1887 pelo oftalmologista judeu-polonês L. L. Zamenhof. O esperanto tem sido o projeto de língua auxiliar de maior difusão, juntamente com seu rebento, o Ido, projeto reformista proposto em 1907.

Em 1903, o matemático italiano Giuseppe Peano propôs seu projeto naturalista Latino sine flexione, que simplesmente utilizava o vocabulário latino despido de flexões nominais e verbais e livre de quase toda gramática.

O lingüista dinamarquês Otto Jespersen, reconhecido como uma das maiores autoridades em língua inglesa, contribuiu, em 1928, com um projeto de sua lavra, o Novial, sob o lema de que "a melhor língua internacional é aquela que em todos os pontos oferece maior facilidade ao maior número".

Outro conhecido projetista de uma língua auxiliar, que se propôs equilibrar as exigências de regularidade da derivação vocabular e da naturalidade do aspecto das palavras, foi o teuto-lituano Edgar von Wahl. Sua criação, o Occidental, aproxima-se de muito perto da Interlíngua.

Cabe também registrar a celebrada tentativa de C.K. Ogden, da Universidade de Cambridge, criador do Basic English (1935), que reduziu o vocabulário inglês a 850 palavras, das quais apenas 18 eram verbos. Tal simplificação, porém, mostrou-se ilusória, por admitir uma excessiva quantidade de idiomatismos e expressões demasiado longas.

H. Heimer, filólogo sueco, publicou em 1943, seu projeto de língua auxiliar de caráter naturalista, o Mondial, muito semelhante ao Occidental.

Também em 1943, o matemático L. Hogben, lançou em Londres seu projeto Interglossa, inspirado no Basic English, no qual utilizava um vocabulário básico de 880 palavras de origem grega e latina, e adotava uma sintaxe chinesa.

Quanto ao projeto da IALA, a interlíngua, iniciaremos o estudo de sua gênese no próximo capítulo.


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